História clínica
Uma menina de seis meses, previamente saudável, foi levada ao pronto-socorro pediátrico pelos pais devido a uma perda de peso preocupante e sinais de desidratação sem causa aparente.
A criança, nascida em outro hospital, a termo, após uma gravidez normal, pesando 3,1 kg ao nascer, é filha de pais saudáveis e não consanguíneos, de ascendência africana. A triagem neonatal genética (teste da bochechinha) havia sido realizada, com resultados normais.
Até então, o desenvolvimento da menina havia sido normal, e os pais não relataram queixas respiratórias ou gastrointestinais. A criança amamentava bem, com boa aceitação do leite materno, e não apresentava histórico de febre, vômitos ou diarreia. No entanto, nas semanas que precederam a consulta, os pais notaram que a menina parecia menos ativa, mostrava sinais de irritabilidade crescente, e havia uma redução significativa na quantidade de urina, o que levou à suspeita de desidratação.
Exame físico e avaliação
Ao exame físico inicial, a paciente estava em estado geral regular, visivelmente irritada e letárgica. Os sinais vitais mostravam uma frequência cardíaca de 140 batimentos por minuto, o que, associado à diminuição da perfusão periférica, indicava uma resposta compensatória à desidratação. A pressão arterial estava dentro dos limites normais para a idade, em 83/61 mmHg. O peso da criança era de 5,2 kg, correspondente ao terceiro percentil para a idade.
O exame revelou sinais claros de desidratação moderada a grave: as mucosas estavam secas, os olhos encovados, e o turgor cutâneo diminuído. Além disso, houve redução significativa na produção de urina, o que foi confirmado pelos pais e corroborado pela história clínica. A ausculta cardíaca e a pulmonar não revelaram anormalidades, e o abdômen estava flácido e indolor à palpação, sem distensão ou organomegalias palpáveis.
A criança foi inicialmente tratada com reidratação intravenosa utilizando solução salina isotônica. Após 24 horas de terapia intensiva, o peso da paciente aumentou para 5,7 kg (décimo percentil), e houve melhora nos sinais de desidratação, com recuperação parcial da turgidez cutânea e normalização parcial da perfusão periférica.
Os exames laboratoriais revelaram uma alcalose metabólica severa, com pH de 7,69, pressão parcial de dióxido de carbono (PCO2) de 30 mmHg e níveis elevados de bicarbonato (HCO3) de 37 mmol/L. A análise do perfil eletrolítico mostrou hiponatremia grave (sódio 123 mmol/L), hipocloremia (cloreto 72 mmol/L) e hipocalemia significativa (potássio 2,7 mmol/L). Perdas de cloreto na urina e nas fezes (cloreto na urina <15 mmol/L, cloreto nas fezes 12 mmol\L) foram descartadas.
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Questão 1. Discussão
Na avaliação de uma criança com perda ponderal inexplicável, desidratação e distúrbios eletrolíticos, uma ampla gama de diagnósticos diferenciais podem ser considerados, dada a complexidade e a sobreposição de sintomas em diversas doenças da infância.
Entre os diagnósticos diferenciais mais relevantes, estão a Síndrome de Bartter, a insuficiência adrenal (doença de Addison), a síndrome de Fanconi e a displasia broncopulmonar. Essas doenças compartilham características clínicas com o quadro apresentado, como distúrbios eletrolíticos e desidratação, tornando relevante sua consideração e exclusão para evitar diagnósticos inapropriados e garantir a abordagem terapêutica mais adequada.
A Síndrome de Bartter é uma doença genética rara caracterizada por alcalose metabólica, hipocalemia e hipocloremia, semelhante ao quadro apresentado pela paciente. Crianças com essa síndrome geralmente apresentam poliúria, polidipsia e podem ter crescimento prejudicado devido à perda crônica de eletrólitos.
Embora esses achados eletrolíticos fossem compatíveis com o caso, a ausência de poliúria e polidipsia, além do desenvolvimento normal até o início dos sintomas, diminuiu a probabilidade desse diagnóstico. Já a insuficiência adrenal primária pode causar desidratação, hiponatremia e hipercalemia, geralmente acompanhadas de sintomas como hiperpigmentação cutânea, fraqueza e fadiga. No entanto, a hipocalemia significativa, em vez da esperada hipercalemia, além da falta de outros sinais típicos de insuficiência adrenal, como hiperpigmentação e hipotensão, tornam esse diagnóstico improvável.
A Síndrome de Fanconi, um distúrbio tubular renal, poderia justificar a perda de eletrólitos e a desidratação. Caracteriza-se por acidose metabólica, hipofosfatemia e raquitismo, além de poliúria e desidratação. Embora o quadro de desidratação e desequilíbrio eletrolítico fosse consistente, os achados laboratoriais de alcalose metabólica, em vez de acidose, excluem este diagnóstico.
Por fim, a displasia broncopulmonar, comumente associada a recém-nascidos prematuros e ventilados mecanicamente, pode levar a complicações respiratórias crônicas e distúrbios eletrolíticos. Entretanto, a paciente não apresentou histórico de problemas respiratórios ao nascer ou necessidade de ventilação mecânica, e o exame físico não mostrou sinais de insuficiência respiratória crônica, o que descarta essa enfermidade como diagnóstico.
Dada a persistência dos sintomas e os achados laboratoriais, foi realizado o teste de cloreto no suor, que revelou níveis elevados (127 mmol/L), altamente sugestivos de fibrose cística. O diagnóstico foi posteriormente confirmado pelo sequenciamento genético de nova geração, que identificou uma mutação rara no exon 4 do gene CFTR, resultando em uma substituição missense c.416A>T; p.His139Leu; chr7:117171095A>T, considerada deletéria.
A fibrose cística (FC) é uma doença genética que acomete principalmente os sistemas respiratório e digestivo das crianças. Ela é causada por mutações no gene CFTR (regulador de condutância transmembrana da fibrose cística, do inglês cystic fibrosis transmembrane conductance regulator), levando à produção de muco espesso e pegajoso que pode obstruir as vias aéreas e causar infecções crônicas.
A prevalência da FC é notavelmente maior entre as populações caucasianas, com uma incidência de aproximadamente 1 em 3 mil nascidos vivos nesse grupo. No entanto, estudos recentes indicam que a doença também é cada vez mais reconhecida em populações hispânicas, afro-americanas e asiáticas, o que sugere um impacto epidemiológico mais amplo do que se imaginava, como evidenciado neste caso. [1]
Em crianças, as manifestações clínicas da FC podem variar significativamente, sendo que os sintomas respiratórios costumam ser os mais proeminentes. Entre eles, destacam-se tosse crônica, chiado no peito e infecções pulmonares recorrentes, que podem levar a danos pulmonares progressivos e insuficiência respiratória se não forem tratados de forma eficaz. A gravidade da doença pulmonar nesses pacientes é frequentemente avaliada por meio do volume expiratório forçado em um segundo (VEF1), uma medida objetiva da função pulmonar. [2]
O estado nutricional é outro aspecto importante no cuidado dessas crianças. Muitas delas sofrem de desnutrição devido à insuficiência pancreática, que compromete a absorção de nutrientes. Estudos demonstraram que uma porcentagem significativa de crianças com FC não atinge as necessidades nutricionais adequadas, o que impacta negativamente seu crescimento e desenvolvimento, como veremos a seguir no caso da irmã mais velha da nossa paciente. As intervenções nutricionais, como o tratamento de reposição de enzimas pancreáticas e dietas com alto teor calórico, são componentes essenciais. Ainda assim, muitas crianças enfrentam desafios para alcançar um estado nutricional satisfatório. [3]
O tratamento inicial da paciente em questão priorizou sua estabilização, com a correção das anormalidades eletrolíticas e a reidratação intravenosa. A suplementação de potássio foi administrada cuidadosamente para corrigir a hipocalemia, enquanto a hiponatremia e a hipocloremia foram tratadas com solução salina isotônica. Com a melhora gradual dos parâmetros laboratoriais, a suplementação de potássio foi descontinuada após a normalização dos níveis de eletrólitos.
A paciente recebeu alta hospitalar após cinco dias, com orientações para continuar a suplementação oral de cloreto de sódio em casa. Devido à descoberta da mutação genética rara e à apresentação atípica da fibrose cística, sua irmã mais velha, de cinco anos, que tinha um histórico de infecções pulmonares recorrentes e falha no crescimento, foi também submetida a testes genéticos. O mesmo defeito genético foi identificado, confirmando o diagnóstico de fibrose cística em ambas as crianças. Um plano de tratamento abrangente foi iniciado, incluindo suporte nutricional, fisioterapia respiratória e monitoramento contínuo da função pulmonar e do estado nutricional.
Saiba mais sobre a fibrose cística.
Questão 2.
gene CFTR está localizado no cromossomo 7 e consiste em 27 exons, com mais de 2 mil mutações identificadas até o momento, levando a um vasto espectro de possíveis manifestações clínicas associadas à FC. A mutação mais prevalente, F508del, é responsável por aproximadamente 70% dos casos de FC em todo o mundo, enquanto mutações raras, como D579G e R117H, contribuem para as diversas expressões fenotípicas da doença. [4]
A relação entre as mutações raras no gene CFTR e a fibrose cística é complexa. Enquanto mutações comuns, como a F508del, estão associadas a um fenótipo clássico de FC, caracterizado por doença pulmonar grave e insuficiência pancreática, as mutações raras podem resultar em apresentações mais brandas ou atípicas. Por exemplo, a mutação D579G foi associada à hipoeletrolitemia recorrente e não está limitada a grupos étnicos específicos. Essa variabilidade ressalta a importância dos testes genéticos e das abordagens personalizadas no controle da FC, já que as implicações clínicas das mutações raras podem diferir significativamente daquelas das mutações mais comuns, como vimos no nosso caso. [5]
As consequências funcionais das mutações do gene CFTR podem ser categorizadas em várias classes, com base em seus efeitos na síntese, no processamento e na função da proteína. Mutações de Classe I resultam na ausência completa da proteína CFTR, enquanto mutações de Classe II, como a F508del, levam à formação incorreta e degradação prematura da proteína. Mutações de Classe III atingem a abertura do canal CFTR, prejudicando o transporte de íons, enquanto mutações de Classe IV levam à redução da condutância através do canal. As mutações raras podem se enquadrar em qualquer uma dessas categorias, determinando a gravidade da doença e a resposta ao tratamento. [6]
Saiba mais sobre mutações no CFTR.
Questão 3.
Como já vimos, um dos principais fatores que compromete o crescimento e desenvolvimento em crianças com fibrose cística é a insuficiência pancreática, presente na maioria dos pacientes com FC. Essa patologia causa má absorção de nutrientes, principalmente gorduras e proteínas, essenciais para o crescimento. O tratamento de reposição de enzimas pancreáticas (PERT) é frequentemente necessário para ajudar na digestão e absorção. No entanto, apesar dessas intervenções, muitas vezes as crianças ficam abaixo da médica em termos de altura e peso, como observado na irmã da nossa paciente. [7]
A relação entre a fibrose cística e o crescimento é ainda mais complicada pela presença do diabetes relacionado à fibrose cística (DFC), que atinge uma proporção significativa de adolescentes e adultos com a doença. A prevalência de DFC aumenta com a idade, impactando o estado nutricional e a saúde metabólica. Em crianças, o início do diabetes pode levar a desafios adicionais no controle da ingestão alimentar e na manutenção do crescimento adequado. Pesquisas indicam que crianças com DFC podem apresentar crescimento inferior em comparação às que não têm diabetes, enfatizando a necessidade de monitoramento dos níveis de glicose aliado ao suporte nutricional. [8]
Por fim, mas muito relevante, os aspectos psicossociais de viver com fibrose cística também podem influenciar o crescimento e o desenvolvimento. As crianças com FC geralmente enfrentam desafios emocionais e psicológicos significativos devido à natureza crônica da doença, às hospitalizações frequentes e à carga de tratamentos diários. Esses fatores podem aumentar o estresse e a ansiedade, o que pode prejudicar o desenvolvimento cerebral, o apetite e a ingestão nutricional. Intervenções de apoio, como aconselhamento e programas voltados à família, são essenciais para lidar com esses desafios e promover o bem-estar geral das crianças com FC. [9]
Saiba mais sobre os aspectos nutricionais no manejo da FC.
Dr. Hermano Alexandre Lima Rocha é médico, Pós-Doutor em epidemiologia pela Harvard School of Public Health, Alumnus do curso Effective Writing for Health Care da Harvard Medical School e professor de Epidemiologia na faculdade de medicina da Universidade Federal do Ceará. O Dr. Hermano também é cientista do desenvolvimento infantil, realiza estudos epidemiológicos para a geração de políticas públicas que ajudem a aumentar o capital humano internacional e desenvolve pesquisas com o uso aplicado à saúde pública de estatística de inteligência artificial específica.
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