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Desafio clínico: Mulher de 23 anos com hipertensão de difícil controle e amenorreia primária

médico segurando uma placca escrita amenorreia

História clínica


Mulher de 23 anos apresenta hipertensão arterial e amenorreia primária. Iniciou o uso de anticoncepcional oral (ACO) aos 15 devido à ausência da menarca, telarca e de pelos axilares e pubianos. Na época, um ultrassom pélvico revelou útero de tamanho pequeno e ovários com morfologia policística. A paciente teve fluxo menstrual apenas nas pausas das cartelas de ACO, mas suspendeu o uso aos 17 anos após diagnóstico de hipertensão arterial.


No momento ela faz uso de enalapril (40 mg/dia), hidroclortiazida (25mg/dia) e amlodipina (10 mg/dia), mas ainda mantém níveis pressóricos elevados, com episódios esporádicos de cefaleia occipital. Ela nega palpitações e relata ganho de aproximadamente 5 kg durante pandemia de covid-19, sem alterações no comportamento da pressão arterial nesse período.


Em relação a antecedentes familiares, ela tem a mãe e o pai vivos, ambos com 65 anos, de descendência espanhola e portuguesa, respectivamente, sem consanguinidade na família. A mãe teve a menarca aos 11 anos e tem diabetes tipo 2. A irmã de 25 anos teve a menarca aos 12 e está hígida.


Exame físico

A paciente está bastante ansiosa, lúcida e orientada no tempo e espaço, com fácies atípica. A altura é de 167 cm; tem 90 kg e IMC de 32.3. Frequência cardíaca: 76 batimentos por minuto; pressão arterial de 160 x 100 mmHg. Na ectoscopia, não foram visualizados sinais de descoloração cutânea ou hematomas. A ausculta pulmonar revela pulmões limpos, sem ruídos adventícios. A frequência e o ritmo cardíaco são regulares, sem sopros cardíacos ou carotídeos. Os pulsos são palpáveis e normais. Exame físico abdominal sem massas palpáveis, indolor à palpação e ruídos hidroaéreos presentes.


A tireoide é normopalpável, sem alterações, com volume de cerca de 20 gramas.

As mamas são pequenas, mas com presença de estímulo estrogênico pelo uso do contraceptivo. Observa-se completa ausência de pelos axilares e pubianos, e o genital feminino tem aspecto infantil. O estadiamento de Tanner é M3P1. A paciente trouxe alguns exames solicitados pelo clínico para a consulta:


Glicemia jejum 88 mg/dL (até 99 mg/dL)

Na: 144 (136 a 145 mEq/L)

K: 3,2 (3,5 a 5,1 mEq/L)

Colesterol total: 189 (até 200 mg/L)

HDL: - 45 (acima 40 mg/dL)

Ureia: 35 (10 a 50 mg/dL)

Creatinina: 0,9 (0,6 a 1,2 mg/dL)

HbA1C: 5,4

LH: 52 (até 11 UI/L)

FSH: 36 (até 12,0 UI/L).



Com base nas informações acima, qual é o diagnóstico mais provável?

  • Síndrome do ovário policístico

  • Hiperaldosteronismo primário

  • Mosaico de Síndrome de Turner

  • Nenhuma das alternativas anteriores



Discussão


Conforme relatado, a paciente apresenta ausência de pubarca e de telarca espontânea, amenorreia primária, hipertensão arterial com hipocalemia e hipogonadismo hipergonadotrófico. Fisiologicamente, a presença dos pelos axilares e pubianos é consequência do amadurecimento da camada reticulada do córtex adrenal, evento denominado adrenarca, que geralmente começa após os nove anos nos meninos e os oito anos nas meninas.


A adrenarca ocorre devido à ativação de enzimas envolvidas na esteroidogênese adrenal, dentre elas a 17-hidroxilase (CYP17). Essa enzima cataliza duas reações sequenciais: a 17-hidroxilação da pregnenolona e progesterona, bem como a clivagem da cadeia lateral na posição 17,20 (papel de 17,20 liase) dos produtos da primeira reação, resultando na produção de androstenediona e sulfato de dehidroepiandrosterona (SDHEA), precursores imediatos da síntese de andrógenos responsáveis pela pubarca. A ação da 17-hidroxilase também é ativada mais tardiamente nas gônadas durante a puberdade, tendo o papel de precursora da síntese da produção final de testosterona nos testículos e de estrógeno nos ovários.


Portanto, a ausência de andrógenos adrenais pela deficiência da enzima 17- hidroxilase (D17OH) resulta na falta de pubarca na paciente. Além disso, a deficiência na produção do estrógeno ovariano leva à ação deficitária da enzima na gônada, com consequente hipoestrogenismo e hipogonadismo hipergonadotrófico e amenorreia primária.



A presença de morfologia policística ovariana pode ser explicada por:

  • Artefato de imagem

  • Hiperestímulo gonadotrófico sobre folículos ovarianos não pr

  • Presença de tumores císticos ovarianos

  • Nenhuma das alternativas



A disfunção ovariana (hipogonadismo hipergonadotrófico) leva ao estímulo excessivo do eixo hipotalâmico-hipofisário, o que, por sua vez, acarreta o superestímulo dos fólicos ovarianos, formando cistos que, ao se romperem, podem levar a quadros de abdome agudo. Em pacientes de cariótipo 46XY, a falta da ação da 17-hidroxilase na adrenal e nas gônadas do feto durante a gestação resulta na produção deficiente de andrógenos nesse período, comprometendo o processo de masculinização do genital externo. Nesses casos, as pacientes apresentam fenótipo típico feminino, com ausência de estruturas mullerianas e do terço superior da vagina, sendo classificadas como diferença do desenvolvimento sexual (DDS) 46XY.



A hipertensão da paciente é decorrente de:

  • Hipertensão primária ou essencial

  • Hiperplasia adrenal congênita por D17OH

  • Uso de anticoncecional

  • Tumor de suprarrenal

A enzima 17-hidroxilase promove a hidroxilação do carbono 17, que também é essencial para a produção do cortisol no córtex adrenal. Por isso, a via não 17-hidroxilada (17-Deoxi) da zona fasciculada (ZF) fica exageradamente ativada pelo ACTH, produzindo quantidades elevadas de esteroides precursores da ação dessa enzima, como deoxicorticosterona (DOC), corticosterona (B) e outros. O excesso de produção de DOC na ZF é o grande responsável pela retenção hidrossalina e os quadros de hipertensão arterial, hipocalemia e supressão da atividade plasmática de renina. No entanto, a produção de aldosterona encontra-se muito reduzida, uma vez que a ação excessiva de DOC nos receptores mineralocorticoides reduz a formação de aldosterona e outros esteroides da zona glomerulosa do córtex adrenal


Níveis baixos de cortisol e esteroides sexuais adrenogonadais, seguidos de hiperestímulo do eixo hipotálamo-hipofisário-adrenal (CRH e ACTH elevados), com consequente hiperprodução precursores adrenocorticais mineralocorticoides e B, levam a quadro clínico característico compatível com as manifestações clínicas da paciente em questão:


  • Fenótipo feminino em XX ou XY

  • Hipertensão arterial om hipocalemia

  • Ausência de pubarca

  • Hipogonadismo hipergonadotrófico com ausência de telarca e/ou menarca


Dessa forma, todos os achados fenotípicos encontrados na paciente caracterizam a hiperplasia adrenal congênita (HAC) por D17OH. Essa doença segue um padrão de herança autossômica recessiva, causada por variantes patogênicas no gene CYP17A1, que codifica a ação da enzima 17 hidroxilase.


A HAS na D17OH é de início precoce e difícil controle, predispondo a desfechos renais e cardiovasculares prematuros. Além disso, a produção abundante de corticosterona fornece atividade glicocorticoide suficiente para compensar o estado de hipocortisolismo crônico.

Tabela 1. Exames bioquímicos da paciente

Exame

Resultado

Valor de referência

Testosterona

Indetectável

Até 64 ng/dL

Androstenediona

Indetectável

25–220 ng/dL

SDHEA

Indetectável

134–400 µg/dL

17OHP

Indetectável

20–120 ng/dL

Cortisol

1,5

6–18 µg/dL

Progesterona

3200

Até 150 ng/dL (fase folicular

DOC

2600

Até 25 ng/dL

B

16000

 95–1500 ng/dL

Atividade plasmática de renina

0.1

 0.3–5.8 ng/mL/h

Aldosterona

3

4–15 nd/dL

ACTH

240

 15–60 pg/mL

Cariótipo

46XX

Feminino: 46XX

 

Como evidenciado nos exames da paciente (tabela.1), o diagnóstico laboratorial nos indivíduos com D17OH mostra níveis elevados de DOC, progesterona, pregnenolona, B, além de níveis baixos de cortisol, andrógenos e estrógenos. A atividade plasmática de renina (APR) e a aldosterona mostram-se suprimidas, enquanto ACTH e gonadotrofinas estão elevadas. A paciente em questão tem cariótipo 46XX, com estruturas mullerianas presentes, mas útero pequeno e genital infantil pela ausência de estímulo estrogênico fisiológico adequado.


Apenas 1% dos casos de HAC em todo o mundo são causados por D17OH, e a maioria dos relatos é proveniente de famílias consanguíneas. Um estudo de frequência de HAC em centros de referência endocrinológicos do Brasil mostrou que a D17OH é considerada a segunda causa da doença, representando até 7% dos casos, enquanto a deficiência de 21-hidroxilase é responsável por cerca de 90%. [1,2]


Essa maior prevalência está provavelmente relacionada à presença de genes fundadores de origem espanhola e portuguesa durante a colonização, além da ampla miscigenação com índios e negros africanos no período da escravidão (Costa-Santos, Kater et al. 2004). Os principais objetivos no tratamento incluem controlar a hipertensão, evitar os efeitos da deficiência de cortisol e restaurar as características sexuais secundárias. O uso do glicocorticoide (GC) é a terapia-chave na D17OH.


A hipertensão e a hipocalemia são prontamente corrigidas com uso do GC, mas podem necessitar de adição de espironolactona ou outros anti-hipertensivos. Além disso, pacientes de ambos os gêneros biológicos que se identificam socialmente como femininos devem receber terapia de reposição de estrogênios a partir da puberdade. A reposição de andrógenos pode ser utilizada nas pacientes que desejam desenvolver pelos. A orquiectomia faz-se necessária em pacientes 46XY com fenótipo feminino.


Citar este artigo: Desafio Diagnóstico: Mulher de 23 anos com hipertensão de difícil controle e amenorreia primária - Medscape - 31 de julho de 2024.



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